segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

sobre vanessa e todas nós






Uma amiga se feriu.

Ela não caiu de bicicleta, não tropeçou, não escorregou, não estava se arriscando de skyte, de altura, nada.

Ela foi ferida. por existir.

Sei que soa forte, soa exagero, mas infelizmente não é. E todas nós, suas amigas, estamos nos sentindo assim, machucadas, abandonadas, desprotegidas.

Sem poder contar com o Estado, e pior, com os seres humanos, outros, que viram e nada fizeram.

Para a sociedade não somos todos iguais. Nem para o guarda do teatro que não manifestou ajuda. Nem para o taxista que se recusou a levá-las porque a lapa era muito perto da praça tiradentes, ele faturaria pouco. Vivemos nessa sociedade suja onde 30 reais valem mais que a compaixão, o amor, a solidariedade.

E não dizem que não se bate em uma flor?

Vanessa é uma flor, é pequena e delicada, pacífica.

Ainda que fosse um cacto, o que leva alguém a agredir uma menina por ela estar de mão dada com sua mulher? O que leva alguém a se achar no direito de?

Eu já venho conversando com muita gente sobre a violência cotidiana que nós mulheres sofremos nas ruas, no trabalho. Há algumas semanas me senti violentada verbalmente por um homem, quando voltava para casa de noite com uma amiga. Ainda que eu racionalmente saiba que não tenho culpa alguma quanto ao comportamento abominável desse(s) sujeito(s), senti-me constrangida por ela ter presenciado tal cena. Eu ainda disse: por isso não costumo sair com vestidos assim, um pouco mais justos. E mesmo que ela dissesse que eu não deveria mudar meu comportamento, que o antissocial era ele, quererei eu passar de novo por tal situação?

Até que uma amiga é agredida fisicamente.

Por que nós mulheres, em pleno 2014, ainda somos vistas como objetos, carne, inferiores? Por que os homens, em pleno 2014, ainda se acham no direito (e quase obrigação) de exteriorizar verbalmente o que imaginam quando vêem nossos corpos? Ou eles acham que também não temos imaginação com peitos, paus, bundas, bocas? O que leva um ser humano a invadir o outro com gestos e palavras? A não respeitá-lo como igual? Não pensam que tal situação poderia ocorrer com sua filha, esposa ou mãe? Nem assim? O que leva um ser humano a pensar friamente: “olha aquele casal de lésbicas, vamos lá...”? O que o amor pode ter de tão agressivo que atinja um desconhecido assim? Que criação machista é essa que dão aos pequenos meninos para se transformarem em grandes monstros?

Infelizmente, a maioria das minhas amigas já passou ou presenciou algum abuso de teor sexual durante a vida. Isso é um absurdo. Isso é velado. E quando se fala, é criticada. Poucos desses relatos tiveram apoio de quem o escutou. Por sorte nunca passei grande constrangimento. Mas confesso que demorei muito a me sentir à vontade de biquíni na praia, por exemplo. Tenho eu culpa do corpo que habito? Temos nós culpas do amor que sentimos? Sei que não. Mas dói. E por mais esclarecido e sensível que um homem possa ser, ele não é capaz de imaginar o constrangimento que causa uma palavra suja, uma atitude ofensiva. Um homem não sobe a ladeira de sua casa e, já receoso, ao passar por um grupo de mulheres segurando cervejas leva um susto com uma que passa e grita ao seu lado. Nenhum homem, nem com sua calça de yoga, descerá até a praça e ouvirá uma mulher dizê-lo: “que vontade de chupar esse pau gostoso” (ou coisa pior que não gosto de reproduzir). Nenhum homem, passando em pé na bicicleta, receberá um tapa na bunda, com 11 anos, uma criança. Nenhum homem caminhando, também criança, com seu amigo terá seu pau apertado por uma mulher adulta que passa rápido de bicicleta. Nenhum homem, jovem, receberá uma ligação em sua casa dizendo: “você é o filho mais novo ou mais velho de Fulana? Então calma aí que estou gozando”. É pseudo cômico quando imaginamos a situação ao contrário, tamanha naturalização ela se dá na relação homem –> mulher. Mas todos esses fatos aconteceram, comigo ou com amigas. O caso da homofobia segue esse mesmo pensamento machista: você existe mulher, você existe lésbica, merece apanhar, ser apalpada, ouvir meus desejos. Por quê?

Uma amiga professora conversou com um aluno que estava dizendo que queria “bater naqueles viadinhos que entraram na escola”. Ela tentou explicar que os meninos não lhe faziam mal algum e que, mesmo assim, ninguém pode agredir. Ele só respondeu “eles são gays, TEM QUE apanhar”.

Vi dois vídeos essa semana por acaso, via facebook, que retratam talvez a melhor maneira de aclarar a gravidade dessas situações, que nos dias de hoje não deveriam AINDA existir. Os vídeos tratam de machismo e homofobia fazendo a inversão de papéis: num mundo onde a maioria é homossexual e uma menina se descobre heterossexual e sofre com amigos de escola e família ao ponto de..; e outro onde um homem sofre abusos verbais e físicos na rua enquanto as mulheres passam sem camisa, torcem o pescoço ao vê-lo passar, e são a maioria ao atendê-lo na “delegacia do homem”.

Numa semana onde duas garotas são quase presas após chamarem a ridícula “lapa presente” (“de grego”, alguém disse bem) para defendê-las de um agressor em frente ao bar da cachaça, recebendo pouquíssimo apoio dos que estavam perto, de amigas sofrerem tal violência física por nada e também se sentirem sozinhas sem ajuda alguma.... Como continuaremos a viver? Como continuarão a viver? Teremos que seguir a cartilha da Folha, sem “dar pinta”, teremos que nos trancar em casa? Usarmos burca, talvez? Que Lapa é essa? Que Cidade Maravilhosa é essa? Que sociedade de merda é essa em que calhamos de estar vivendo agora? Azar o nosso?

E eu que jurava que a abertura sobre a temática homossexual estava trazendo esclarecimento e respeito à população, percebo que ela traz consigo também uma violência cada vez maior e menos escondida. E o que, afinal, fariam os guardas do “lapa presente”, ou o segurança do teatro João Caetano, ou o taxista? Eles não acham que é errado, pois COM CERTEZA fazem o mesmo quando vêem uma mulher ou um casal gay nas ruas.

Lembro que minha mãe, quando eu era criança, me dizia que tínhamos que arrumar sempre a cama, caso contrário nosso anjo da guarda não acordaria e nos acompanharia durante o dia. Domingo ao acordar, li a mensagem de Vanessa. Demorei para entender que era dura a verdade. Vanessa e Lady são vizinhas do prédio onde moramos muitos amigos. Fui vê-las, e na pressa, percebi que minha cama ficara desfeita. Olhei para trás, e chorando, deixei. Percebi que não há anjo da guarda algum.







“É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.

É triste, é verdade.




p.s: na mesma noite, sem saber ainda do ocorrido, saía do Leblon com um casal de amigas gays, e do outro lado da rua, um homem disse algo, olhamos só mais longe e ele estava bufando como um touro, em posição de ataque, literalmente como um animal. nojo.




p.p.s.: passadas 24h, após conversas, diálogos, visitas, percebi que talvez o anjo da guarda das meninas estava no único rapaz que foi em direção a elas ajudá-las, fazendo com que os covardes animais fugissem. se não fosse ele, o que seria...? nem pensemos.

percebi também que é importante não generalizar. ontem conversei com um taxista e ele me contou que na noite anterior duas meninas haviam sido assaltadas e ele as levou até uma delegacia, gratuitamente. ainda há humanos nesse zoológico dos horrores, amém.







o relato de Vanessa Holanda:

"ontem, voltando de um bloco de carnaval aqui no RJ, 2 homens me derrubaram no chão, me arrastaram no asfalto, me chutaram, rasgaram minha calcinha, arrancaram meu top e me deixaram quase nua na calçada do centro da cidade. o lugar não estava vazio. tinha gente, muita. tinha segurança, sim. era um lugar iluminado.

o meu corpo é pequeno, não precisa de muito chute pra deixar ele completamente tremido. mas eu não vou a polícia. não vou pq eles também não se importam. não vou fazer exame de corpo de delito, nem na delegacia, nem no médico. eles estão do outro lado, amigos. ontem a noite eu me senti minoria. e que ninguém além dos meus pode ser comigo. nós estamos sós. não dói.”




O relato de Leidiane Carvalho:

“Vanessa Holanda é minha mulher. Estávamos juntas na hora dessa agressão. Ontem sofremos muitos atos de violência. Não só dos caras que nos atacaram, mas do segurança do Teatro João Caetano que não nos ajudou, das pessoas todas que estavam em volta e se omitiram, apenas olharam enquanto apanhávamos, do taxista que se negou a nos levar em casa porque a corrida daria menos que dez reais. Um rapaz foi o único a vir nos defender e se não fosse ele não sei o que teria acontecido. Queria muito saber o nome dele pra agradecer mais uma vez e saber direito o que ele viu, porque depois de uma violência tão grande a memória nos trai. Quero agradecer as muitas mensagens de solidariedade e orientações sobre como proceder e denunciar. Queremos lutar e reagir, agradecemos muito a todos que tem se manifestado mostrando que estão disponíveis pra o que precisarmos. Vamos encontrar os meios certos de fazer a denúncia com sua ajuda. E força pra todos nós.”







Nenhum comentário:

Arquivo do blog